Biografia de George Orwell mostra como "1984" se aproxima dos dias de hoje

30.09.2020 | 14h24
Folhapress
Por Folhapress
O livro demonstra a perícia de Orwell, morto há 70 anos, em analisar a política e a sociedade em décadas tão turbulentas como as de 1930 e 1940

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"Orwell: Um Homem do Nosso Tempo" é assinado pelo pesquisador britânico Richard Bradford

"Admitir que um oponente possa ser tanto honesto como inteligente é visto como algo intolerável. Bem mais satisfatório, em termos imediatos, é gritar que ele não passa de tolo ou canalha, ou ambos, do que descobrir o que ele é de fato. Esse hábito mental, entre outras coisas, é o que torna a previsão política tão extraordinariamente ineficaz em nossa época."

George Orwell não conhecia o Twitter, Donald Trump ou a tropa de choque do bolsonarismo nas redes sociais quando escreveu, em dezembro de 1944, essa passagem de uma de suas colunas na imprensa britânica. O trecho demonstra a perícia de Orwell, morto há 70 anos, em analisar a política e a sociedade em décadas tão turbulentas como as de 1930 e 1940 - e, ao mesmo tempo, indica a atualidade da sua interpretação.

Muitos já trilharam o caminho de saudar o autor como uma espécie de profeta do totalitarismo por seus dois últimos livros, A Revolução dos Bichos e 1984. Mas, segundo o pesquisador britânico Richard Bradford, "Orwell não estava exatamente prevendo o que iria acontecer 70 anos depois". "Ele estava percebendo certas tendências da sociedade que poderiam reemergir de outras maneiras", diz, em entrevista.

O professor de teoria e história literária na Universidade de Ulster, na Irlanda do Norte, busca em Orwell: Um Homem do Nosso Tempo trazer para o presente o criador do pesadelo totalitário vislumbrado em 1984. Nele, a Inglaterra desapareceu nas entranhas do superestado de Oceânia, governado pelo Partido do Grande Irmão. O protagonista, Winston Smith, ele próprio um pequeno funcionário do Ministério da Verdade responsável por reescrever o passado, começa a questionar os fundamentos da sua realidade.

Entre eles o "duplipensamento", que consiste em "saber e não saber, ter consciência da verdade honesta e completa contando mentiras meticulosamente engendradas, defender ao mesmo tempo duas opiniões que se cancelam uma à outra, sabendo que são contraditórias e acreditando em ambas". Talvez o subtítulo "um homem para todos os tempos" fosse mais apropriado para o livro de Bradford, recém-publicado no país.

Isso porque, ainda que Eric Arthur Blair tenha morrido de tuberculose em janeiro de 1950, sete meses depois da publicação de 1984, a presença de seu pseudônimo, Orwell, continua viva no imaginário do século 21. Um episódio incontornável é a entrevista em janeiro de 2017 em que Kellyanne Conway, então assessora de Donald Trump, diz que o porta-voz da Casa Branca estava só apresentando "fatos alternativos" ao afirmar que o novo presidente americano atraíra "a maior audiência de todos os tempos para uma cerimônia de posse" - algo facilmente desmentido por fotografias. As vendas de 1984 nos Estados Unidos cresceram 9.500% na semana seguinte a essa entrevista, segundo a editora Penguin.

"Isso tem sido algo recorrente durante o regime de Trump, ainda que eu não encare o próprio como um ativista do duplipensamento, porque ele não é inteligente o suficiente", diz Bradford. Ele enxerga essa versão americana como um "duplipensar" improvisado, enquanto no Reino Unido uma forma mais calculada vem exercendo papel relevante desde 2016. "O que aconteceu durante a campanha do brexit? As pessoas deliberadamente quiseram acreditar em coisas absurdas. Há o famoso caso do anúncio na lateral de um ônibus que dizia que o brexit significaria uma economia de £ 350 milhões por semana. Foi dito inúmeras vezes que isso era uma mentira."

Ainda assim, Bradford aponta uma diferença fundamental. Se em 1984 o "duplipensamento" era uma "doutrina projetada para negar aos cidadãos o acesso à verdade", diz ele, "a campanha do brexit parece ter triunfado por meio da suposição de que o eleitorado consideraria seu direito democrático a alegre aceitação de mentiras como alternativa preferível aos fatos".

Em termos biográficos, o professor reconhece que há pouco a se acrescentar ao que já se sabe sobre a vida de Orwell - nasceu na Índia sob domínio britânico em 1903, estudou no prestigioso colégio de Eton, foi policial na antiga colônia da Birmânia, atual Mianmar, viveu entre os miseráveis de Paris e Londres, lutou contra os fascistas na Guerra Civil Espanhola, trabalhou na BBC durante a Segunda Guerra Mundial, se isolou numa ilha escocesa para escrever 1984 e morreu pouco depois.

Isso não necessariamente é uma desvantagem para o público brasileiro, já que as biografias anteriores de Orwell nunca foram traduzidas por aqui. "Você eventualmente para de descobrir fatos novos sobre escritores, os arquivos e cartas vão sendo descobertos e se esgotam. É possível saber tudo sobre eles em termos de evidência empírica, mas há novas formas de os enxergar."

Interpretado como sátira da União Soviética stalinista à época de seu lançamento, 1984 parece ter encontrado um paralelo mais eficaz na cidade chinesa de Rongcheng, afirma Bradford. O regime de Xi Jinping usa o lugar como laboratório de um sistema de vigilância que inclui câmeras capazes de leitura labial de comentários que podem ser considerados atos de dissidência política. Os dados ajudam a ranquear os cidadãos, que recebem um crédito inicial de mil pontos e os podem perder à medida que incorram em comportamentos inadequados na visão do Partido Comunista Chinês. A questão que intriga Bradford é o que aconteceria ao cidadão que perdesse todos os pontos. "A China é 1984 hoje."

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