Fantastic Negrito: "As coisas de que eu falo em 'How Long?' não são novidade para os afro-americanos"

07.07.2020 | 12h32 - Atualizada em: 07.07.2020 | 13h17
Marina Martini Lopes
Por Marina Martini Lopes
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Hoje, Xavier Amin Dphrepaulezz é Fantastic Negrito, artista que já venceu duas vezes o Grammy de Melhor Álbum de Blues Contemporâneo

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Vencedor de dois prêmios Grammy, o artista de blues fala sobre sua surpreendente história, racismo e sua paixão pelo Brasil em entrevista à Itapema

Xavier Amin Dphrepaulezz era um adolescente quando começou a se interessar por música. Sem condições de frequentar a University of California, Berkeley, na região onde vivia, passou a entrar escondido no prédio da instituição, para estudar escalas musicais. "Minha 'educação musical' foi essa: invadir a universidade para ouvir e observar o que os alunos estavam fazendo", ele conta. "Eu vivia em uma área pobre, não tinha acesso a esse tipo de coisa. Fingia para mim mesmo que era um estudante de música."

Hoje, Xavier é Fantastic Negrito, artista que já venceu duas vezes o Grammy de Melhor Álbum de Blues Contemporâneo (por The Last Days of Oakland, em 2016, e Please Don't Be Dead, em 2019). Para o dia 14 de agosto, Fantastic Negrito prepara o lançamento de mais um disco, Have You Lost Your Mind Yet?, puxado pelos singles How Long?, Chocolate Samurai e o recém-lançado I'm So Happy I Cry. Mas o caminho para chegar até a satisfação pessoal e artística por meio da música foi longo; e cheio de reviravoltas.

"Quando tinha vinte e poucos anos eu me mudei para Los Angeles", ele narra, em entrevista exclusiva à Itapema. "Eu tinha esse sonho de virar um grande músico, de ficar famoso: acho que 'ficar famoso' é um sonho muito comum quando se tem vinte e poucos anos. Eu consegui meu primeiro contrato, e, alguns anos depois, um maior, com a Interscope Records. Foi a primeira vez que eu fiz um álbum profissional; ainda sob meu nome de batismo, Xavier."

As coisas pareciam ter começado a se encaminhar. Mas aí, em 1999, o músico se envolveu em um acidente de carro quase fatal, que abalou sua carreira e sua confiança. "Eu passei três semanas em coma; e, quando acordei, ainda demorei um pouco para recobrar completamente os movimentos das mãos", relata Fantastic Negrito. "Por um tempo, senti que era o fim da minha carreira como músico, mas aos poucos fui me recuperando. Comecei a descobrir e ouvir mais rock latino, em espanhol, e afropunk; e me envolvi mais com a cena musical underground de Los Angeles, o que foi ótimo, porque é uma cena muito vibrante, muito inspiradora. Eu realmente me diverti por algum tempo, até que meio que cansei de tudo aquilo. Decidi me aposentar: me mudei de volta para minha cidade natal e comprei uma fazenda para plantar maconha. Ter uma horta, plantar sua própria comida, é incrível. Não é só saudável fisicamente, é uma ótima maneira de permanecer mentalmente conectado à natureza. Eu crio galinhas, também."

Mas não era o fim da história de Xavier Amin Dphrepaulezz no mundo da música. "No meio de tudo isso eu formei família, tive um filho", ele prossegue. "E um dia eu decidi tocar violão para ele. Fazia anos que eu não tocava, e ele simplesmente adorou! Ele ficou muito animado, e aquilo deu um estalo na minha cabeça: eu preciso voltar a fazer isso, preciso voltar a fazer música. Foi meu terceiro começo na música, agora como Fantastic Negrito, e eu ouvi das pessoas todo tipo de coisa: que estava velho demais; que ninguém ia ouvir o tipo de música que eu queria fazer, por ser 'estranho demais': não é hip-hop, não é pop."

Fantastic Negrito já teve três começos no mundo da músicaDivulgação

Sem ser levado a sério por ninguém, Fantastic Negrito virou um músico de rua. "Para mim, foi um jeito de deixar as pessoas decidirem se gostavam da minha música ou não", ele explica. "Passei cerca de dois anos fazendo isso, e aí participei do Tiny Desk Concert [série de vídeos ao vivo organizados pela emissora NPR Music], e bum! Essa terceira vez na música foi a que realmente funcionou. Eu sei que é uma história doida", ele conclui, rindo. "Se eu visse essa história em um filme, eu diria 'nah, isso nunca aconteceria'. Mas aconteceu. É a minha vida."

O artista define seu novo trabalho, Have You Lost Your Mind Yet?, como o registro mais pessoal de sua carreira. "Nos discos que fiz até agora, meu foco foi a sociedade como um todo", afirma. "Eu escrevi sobre gentrificação, racismo, violência, o poder que as grandes corporações têm no mundo de hoje. Era como um tipo de comentário social. Já para este álbum, Have You Lost Your Mind Yet?, eu decidi ser muito mais pessoal. Escrevi sobre pessoas que eu conheço, conversas que tenho com essas pessoas. Falei sobre como lidamos com as coisas que nos angustiam; o stress, o excesso de informação, a violência - mas especificamente como eu, e pessoas que eu de fato conheço, parentes meus, amigos, colegas, lidamos com essas coisas.

Um dos singles do novo álbum, How Long?, foi lançado em formato de videoclipe poucos dias depois do assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, o que causou uma nova onda de protestos contra o racismo e ligados ao movimento Black Lives Matter. A letra da canção fala justamente sobre violência policial, tiroteios em massa e outros tipo de agressão provocadas por seres humanos contra outros seres humanos. Coincidência?

"O fato de uma música como How Long?, que parece tão atual, tão pontual, não ter sido escrita agora, nem deveria ser surpreendente; porque as coisas de que eu falo na canção não são novidades para os afro-americanos", explica Fantastic Negrito. "A polícia ser arbitrariamente violenta contra essa parte dos cidadãos do país não é nada novo. É algo atemporal. Eu não vejo minha música como 'política', e não quero ser político - acho que, quando você é político, você está querendo alguma coisa em troca pelo que está dizendo -; mas essas coisas são simplesmente humanas. Eu sou um ser humano, antes de tudo. Escrevi essa música sobre coisas que me afetam como ser humano."

"Have You Lost Your Mind Yet?" é o novo álbum de Fantastic NegritoDivulgação

"Eu acho ótimo que tantas pessoas estejam falando sobre isso neste momento", ele prossegue, ainda sobre os protestos e o movimento Black Lives Matter. "Nós vivemos em um mundo extremamente conectado: o que me afeta afeta você, aí no Brasil, de alguma forma. Inclusive acho que o coronavírus mostra como nós estamos conectados: o que afeta alguém, afeta todo mundo. Então acho maravilhoso que tanta gente esteja prestando atenção nesse assunto agora, falando sobre isso. Uma polícia violenta e arbitrária não é boa para ninguém: não é bom ter isso nos Estados Unidos, no Brasil, no Japão. A polícia não deveria cometer crimes contra seus próprios cidadãos. Acho que todo mundo está se perguntando para que a polícia deve servir, qual é a função da polícia, o trabalho da polícia. É necessário que isso seja debatido."

Fantastic Negrito, aliás, também está em quarentena, em sua fazenda na Califórnia. No começo do período de isolamento social, ele pediu, via redes sociais, que seus fãs e apoiadores mandassem vídeos mostrando o que estavam fazendo em casa, e, com eles, criou o clipe da faixa Chocolate Samurai. "Foi uma ótima experiência!", fala. "Eu estava exercitando minha criatividade e também me conectando a tanta gente ao redor do mundo. Também estou fazendo apresentações online, compondo, gravando algumas coisas. E estou muito feliz por estar aqui na minha fazenda. É muito bom estar em contato com o solo. Cuidar da saúde física, mental, cuidar dos seus."

O artista já esteve no Brasil, no ano passado; e parece ter amado a viagem. "Tocar em São Paulo foi uma experiência incrível", conta, animado. "Sabe, eu viajo bastante, e eu senti que o Brasil parece culturalmente muito conectado com a África, muito mais que outros lugares que eu já visitei e que tem uma grande população negra. Eu amei a comida, amei o público dos shows, amei as pessoas. Eu mal posso esperar para voltar."

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