Fiona Apple já falava de estupro quando o MeToo ainda não existia

24.04.2020 | 16h15
Folhapress
Por Folhapress
Fiona Apple

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Mundo Itapema

A artista acaba de lançar o álbum "Fetch the Bolt Cutters"

O single "Criminal" foi a terceira música trabalhada do álbum de estreia de Fiona Apple, "Tidal", de 1996, quando ela tinha só 17 anos. O clipe, dirigido por Mark Romanek, tem um quê das fotos de Nan Goldin, algo do filme "Kids" e um toque de David Lynch. Apple aparece, esquelética, no meio de outros corpos jogados no chão ou dentro de uma banheira. Tira a roupa e se esfrega nas outras pessoas, mas é uma sexualidade dramática, nada a ver com as lolitas dançantes da época. Foi um sucesso imediato, quase mítico, invadiu a programação da MTV e fez da menina densa o ídolo dos que não caíam nas graças das Britney Spears e das bandas de garotos da época. Era uma menina talentosa, brava e esquisita como tantas outras pessoas.

Apple é treinada em piano clássico e começou a compor aos sete anos de idade. Aos 16, segundo contou à revista New Yorker, enquanto olhava pela janela do apartamento da mãe em Nova York, onde nasceu e passou a infância e a adolescência, ouviu uma voz dizendo a ela que gravasse músicas feitas a partir das anotações de seus diários, cheios de histórias de amor e traumas sexuais. E assim ela fez. Com três composições, foi ao encontro do pai, um ex-ator da Broadway, que morava em Los Angeles, e, com a ajuda dele, fez algumas demos. Uma foi parar nas mãos de um produtor musical chamado Andrew Slater, que gostou do que ouviu. Ele contratou uma banda, alugou um estúdio e produziu o primeiro disco, "Tidal", com baladas furiosas e sofisticadas como "Shadowboxer", e, claro, "Criminal".

Vendeu 2,7 milhões de cópias. O primeiro cheque que recebeu por direitos autorais era de US$ 100 mil, ou R$ 540 mil hoje, mas como ainda era menor de idade, sua mãe teve de depositar em sua conta e assinar o contrato com a gravadora como responsável. Mesmo que fizesse músicas bem sérias, Apple era uma menina no palco, engraçada e conversadora, que chamava a plateia de "vocês adultos".

Mas, em entrevistas, ela em geral botava o repórter na posição de um terapeuta, e falava sem censura sobre sua luta constante contra a depressão, além de contar histórias íntimas e detalhes de sua vida amorosa. À revista Rolling Stone, por exemplo, contou que foi estuprada aos 12 anos por um estranho na escada do prédio onde morava, enquanto ouvia seu cachorro latindo dentro do apartamento. Apple falava essas coisas sem vergonha nem medo de ser estigmatizada - os anos 1990 eram muito diferentes, o movimento MeToo estava longe de existir e quase ninguém admitia publicamente ser vítima de assédio sexual.

No ano do lançamento de "Tidal", ela ganhou o prêmio MTV de melhor artista do ano pela música "Sleep to Dream" e fez um discurso não preparado que surpreendeu o público e a plateia. "Não vou fazer isso como todo mundo faz", ela disse. "Esse mundo é uma bosta e você não deve seguir sua vida pensando no que a gente pensa que é legal, no que está vestindo ou falando", seguiu. "É uma estupidez eu estar aqui." Disse ainda, numa entrevista para a revista Spin, que iria "morrer cedo". "Vou lançar outro álbum, vou fazer boas coisas, ajudar as pessoas e, então, vou morrer."

A boca suja e solta de Fiona Apple logo fez com que fosse vista como uma garota problemática, aspecto reforçado pelas letras de suas músicas e pela sua aparência, que fazia o estilo "heroin chic". Em 2000 ela teve um colapso no palco em Manhattan, e a instabilidade virou sua marca registrada. E tinha também sua vida pessoal, com namorados estrelas como o mágico David Blaine e o cineasta Paul Thomas Anderson, que era amplamente coberta pelos tabloides.

Mesmo se dizendo ser uma pessoa caseira e solitária, Fiona Apple fez amizades duradouras desde que se instalou no bairro de Venice Beach, em Los Angeles. A modelo Cara Delevingne é uma companhia constante, e o amigo mais próximo é o cineasta Quentin Tarantino.

Seus álbuns eram lançados sem pressa. O segundo é de 1999, o terceiro de 2005 e o quarto de 2012. A fama de difícil foi aos poucos dando lugar ao reconhecimento de uma cantora e compositora única e relevante, do nível de Joni Mitchell ou até Bob Dylan. "Fetch the Bolt Cutters" veio para dar mais uma prova disso.

*por Teté Ribeiro

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