Livro destrincha história do videogame e defende maior reconhecimento artístico

18.02.2020 | 20h15
Folhapress
Por Folhapress
 videogame

BLOG

Universo Compartilhado

Autor afirma que marginalização é ruim num mundo cada vez mais colonizado pela lógica dos jogos

No começo de "Shadow of the Colossus", lançado pela Sony em 2005, um jovem de cabelo comprido, usando uma capa e uma espada mágica, leva a cavalo, rumo a um templo, o corpo de uma menina sacrificada.

Para ressuscitá-la, o jogador precisa atacar 16 gigantes com feições de animais e personalidade pacífica. A cada golpe, os colossos urram e lutam para sobreviver --e quando finalmente são mortos, o jogo não oferece um mecanismo tradicional de recompensa, como música ou efeitos visuais para produzir uma sensação de êxtase.

Ao contrário, o protagonista desmaia e uma trilha sonora sombria toca depois da queda de cada colosso.

Passar para a fase seguinte é deixar um animal sacrificado para trás, em uma espécie de tourada melancólica. Algo muito distante dos estímulos eufóricos ao vencer inimigos vistos em outros jogos.

"'Shadow of the Colossus' é uma experiência estética elevada e é interessante por perverter os signos dos videogames até então", avalia João Varella, autor do livro "Videogame, a Evolução da Arte", publicado pela editora Lote 42.

O autor recorre à obra como uma evidência do principal argumento do livro: videogames são uma expressão artística densa, assim como a literatura e o cinema, apesar de serem normalmente vistos como produtos rasos de entretenimento.

Ao longo de 28 capítulos --cada um é um ensaio sobre um jogo que marcou as quase cinco décadas de história dos videogames-- Varella registra os principais gêneros, desenvolvedores e estratégias narrativas e visuais.

Por isso, não há um relato linear no livro, fazendo com que algumas questões permeiem diversos capítulos, como a recusa a uma visão purista que separa a criação artística das lógicas econômicas.

Enxergar os videogames como indústria é, para o autor, "absolutamente necessário para perder a ingenuidade". Varella é também fundador da Lote 42 e da Banca Tatuí.

"Não vejo como analisar a história de qualquer expressão artística sem considerar o mercado. Como o videogame é a mais recente das expressões culturais, ele chega em um contexto mais próximo da globalização", diz.

Para ele, videogames não são vistos com a mesma legitimidade cultural que outras linguagens porque persiste a ideia de que são entretenimento para crianças e adolescentes. Outro fator seria a ênfase dada a jogos de ação e violência. "A lógica de matar ou morrer é um jeito de gerar imersão, e ficou meio difícil dissociar os videogames dessa ideia."

A conexão entre videogames e violência, para Varella, leva à estigmatização dessa linguagem e a tentativas de censura, como no episódio em que "Counter Strike" foi proibido no Brasil, em 2008. "Essas pontes são destruídas, e isso faz com que o videogame não tenha reconhecimento e não seja debatido", afirma.

A marginalização dos games não poderia ser pior em um mundo que assiste, de acordo com o autor, à colonização das regras do universo dos jogos em outras esferas da vida cotidiana, como as redes sociais.

"A Uber te dá pontos, isso é videogame. O aplicativo de corrida te impõe metas e objetivos, isso é videogame. A cultura de videogame está chegando à cabeça das pessoas. São as pessoas que não estão preparadas para isso."

Um exemplo desse fenômeno é, para ele, a disseminação dos placares pelo mundo digital, uma das técnicas mais antigas para estimular jogadores. "Os aplicativos usam técnicas de gamificação. Hoje, há mais curtidas, mais compartilhamentos, mais seguidores --isso também é um placar."

Varella avalia que a implicação mais importante desse processo é que há estímulos ocultos que orientam o comportamento das pessoas, daí a urgência de entender as engrenagens dos videogames.

"Isso vai nos condicionando. Vai nos dizendo o que é certo e o que é errado. É normal gostar de ganhar 'likes', só que muita gente entrou nesse jogo sem entender que era um jogo, sem saber que tem gente querendo usar uma lógica de mercado. [As plataformas] querem que você fique mais tempo lá porque vai ver mais anúncio, e mais anúncio significa mais dinheiro."]

Matérias Relacionadas