Livro "O Escândalo do Século" reúne 50 textos de Gabriel García Márquez

03.08.2020 | 17h08
Folhapress
Por Folhapress
 Gabriel García Márquez

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Mundo Itapema

Os textos jornalísticos de Gabriel García Márquez teriam espaço na "mídia mainstream" dos dias atuais? Pelos temas que ele aborda, sim. Gabo, como é conhecido, escreveu resenhas de cinema, cobriu cúpulas de presidentes, fez perfis de ditadores, relatou o desabastecimento em Caracas, a Revolução Cubana, a Revolução Sandinista e a violência do narcotráfico e das guerrilhas no país em que nasceu, a Colômbia.

Pelos formatos que ele usava, também. Embora, neste caso, pudesse irritar algum editor mais formal, que prefere o relato seco de um evento. Gabo gastava tempo nos detalhes que definiam um personagem -sua roupa, suas expressões, seu modo de falar. E, não raramente, usava um recurso que não costuma funcionar bem no relato jornalístico por escrito, a ironia, fazendo o leitor rir de uma crônica que poderia ser chatérrima. Por exemplo, o relato de como o papa havia se deslocado do Vaticano até sua casa de veraneio, em Castel Gandolfo, nos arredores de Roma.

O modo de abordar os eventos talvez escapasse aos manuais contemporâneos de redação. Porém, nos dias atuais, marcados pela reinvenção e inovação do jornalismo, poderia levar a uma discussão sobre o motivo de não usar o legado do Gabo jornalista como inspiração. Por exemplo, ao cobrir cúpulas presidenciais, chatas e arrastadas em geral, Gabo relatava como o então presidente dos Estados Unidos, Dwight Eisenhower, havia se ausentado de uma das reuniões para para comprar brinquedos para um neto.

Quando cobriu a inauguração da linha direta por telefone entre Bogotá e Medellín, pôs o foco em quem teria feito a barba, naquele dia, do então presidente colombiano Mariano Ospina Pérez, imaginando o que teria pensado o barbeiro ao ter "a faca afiada na garganta" do mandatário. Já quando relatou a falta de água em Caracas, cidade onde viveu e trabalhou como jornalista, o fez com a grandiloquência da qual depois trataria

as tragédias que caíram sobre a imaginária Macondo, onde se passa o seu romance mais célebre, "Cem Anos de Solidão". Porém, sem inventar uma vírgula.

Parte de sua longa produção para distintos jornais e revistas está na coletânea "O Escândalo do Século", que é lançada agora no Brasil. É uma seleção de 50 reportagens, realizada pelo editor espanhol Cristóbal Pêra, com prólogo do jornalista americano Jon Lee Anderson, que foi amigo de Gabo. "Gabo apreciava o jornalismo sério, e tinha reverência com relação aos jornalistas profissionais, o que não significa que não cometia alguns exageros, nem que fosse perfeito. Ele sabia disso e imprimia seu estilo. Também fica claro que desta fonte, a realidade, tiraria o material para sua literatura. E também escrevia com o cuidado necessário para que suas reportagens fossem bem escritas para serem lidas como contos", diz Jon Lee Anderson.

Ele acrescenta que o "Gabo jornalista" é uma categoria a ser analisada passo a passo, já que o escritor foi mudando ao longo de sua carreira. Da primeira fase, a chamada "costeira", quando viveu entre Cartagena e Barranquilla, cidades litorâneas da Colômbia, os textos são relatos  jornalísticos com ambições literárias. Já quando morou na Europa como correspondente, sobressaiu o Gabo excitado por presenciar momentos históricos, ao mesmo tempo em que afinava sua ironia.

Por exemplo, quando descreve Londres, diz que é uma cidade tão cheia de neblina que praticamente ninguém se via, mas todos podiam ouvir uns aos outros dizendo "sorry", ou desculpe, em português. Já o Gabo da década de 1970, com as ditaduras latino-americanas no poder e sua aproximação a Fidel Castro, passou a ser um jornalista militante.  "A queda de Salvador Allende, no Chile, marcou sua visão da profissão como uma cruzada contra o autoritarismo", diz Anderson.

Já nos anos 1980, Gabo amadureceu e passou a trabalhar por um jornalismo mais sério. "Prova disso é o livro 'Notícias de um Sequestro', em que tratou o tema com rigor e exaustão", diz Anderson. E outra, a criação da Fundação Gabo, antes chamada de Fundação para o Novo Jornalismo Ibero-Americano, e que completa agora 25 anos. "Estamos fazendo o que Gabo faria num momento como este, de pandemia. Encontrar uma maneira para que o jornalismo seja atuante, inovador, essencial. Formando e treinando jornalistas", conta Jaime Abello Banfi, que dirige a fundação. "Falam de Gabo como referência do realismo mágico, mas antes do mágico é preciso lembrar que sempre está o realismo, a realidade. Gabo nunca tirou os olhos disso, das preocupações com os conflitos em seu país, com sua gente e sua profissão", diz Banfi.

Neste aniversário, pela primeira vez, a Fundação Gabo realizará seu encontro anual de modo virtual e continua com a realização de oficinas e cursos online. Para quem tenta estabelecer um dilema sobre se Gabo preferia o jornalismo ou a literatura, a realidade tem a resposta. Gabo usou parte do dinheiro que ganhou com seu Nobel de literatura para custear a fundação e para comprar uma revista de jornalismo na Colômbia. A seleção de "O Escândalo do Século" tem textos escritos entre 1950 e 1987 e crônicas e reportagens. Estão no livro os primeiros, que publicou no El Universal de Cartagena e no El Heraldo de Barranquilla. Estes foram os que o levaram a contrariar seu pai e abandonar os estudos de direito para se dedicar só à escrita. Alguns foram publicados em meios venezuelanos, como Élite e Momento, e outros que escreveu como correspondente da agência Prensa Latina, nos Estados Unidos e na Europa.

Como toda seleção, ficou de fora muita coisa, principalmente do final de sua carreira, como perfis que escreveu da cantora colombiana Shakira e do ditador venezuelano Hugo Chávez. Neste último, há uma crítica indireta muito forte a Fidel Castro. Ainda assim, o livro "é uma boa introdução a uma obra jornalística que é muito ampla, e que muita gente desconhece. O Nobel e a reconhecida fama que ganhou com seus romances fazem com que muita gente fora do círculo jornalístico nem saiba que Gabo foi um jornalista apaixonado pela profissão", diz Anderson.

Além dos textos completos que estão em sua "Obra Periodística", compilada em cinco volumes, Gabo deixou dois livros-reportagem que são exemplares. Entre eles, está "Relato de um Náufrago", uma série de reportagens, publicadas em sequência, no El Espectador, que contou a história de Luis Alejandro Velasco, único sobrevivente de um navio da marinha colombiana. Para quem crê que as reportagens de García Márquez eram só jornalismo literário, esta continha um furo que incomodou muita gente. Gabo descobriu que o navio tinha afundado, na verdade, por causa de uma sobrecarga de contrabando.

*por Sylvia Colombo

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