Livro sobre "Dois Papas" explicita as contradições de Bento XVI e Francisco

06.02.2020 | 12h30
Folhapress
Por Folhapress
Filme da Netflix é protagonizado por Jonathan Pryce e Anthony Hopkins

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Obra aprofunda acusações de que Bergoglio tinha conhecimento sobre torturas na ditadura argentina

É difícil ler Dois Papas, livro em que o roteirista Anthony McCarten compila a pesquisa que realizou para o filme homônimo da Netflix, sem se perguntar como seria o longa como um thriller. Afinal, não faltam contradições nas biografias dos protagonistas da ficção, os pontífices Bento XVI (o alemão Joseph Aloisius Ratzinger) e Francisco (a argentino Jorge Mario Bergoglio).

O primeiro é acusado de ter negligenciado as denúncias contra um padre que molestou crianças por quase 30 anos na Alemanha - na época em que os primeiros casos foram encaminhados à Igreja, Joseph era arcebispo de Munique. Já o segundo tem suas possíveis conexões com a ditadura militar argentina analisadas a fundo no livro.

Enquanto o filme perdoa Jorge Bergoglio por seu envolvimento na captura de dois padres jesuítas pela ditadura argentina nos anos 1970, a pesquisa de McCarten explora as incongruências deste e de outros episódios, como a declaração de uma família de que o ex-cardeal sabia da prática de entregar os bebês paridos nos centros de tortura a pessoas ligadas ao regime.

McCarten diz que a decisão de lidar com esses e outros eventos mais superficialmente nas telas tem a ver com os limites do audiovisual. 

— Claro que um livro de não ficção permite construir um retrato mais fiel. Um filme só pode ter determinado número de eventos — defende.

Não que o autor seja assim tão obediente aos ditames da linguagem cinematográfica. Vide sua decisão de estruturar Dois Papas em torno de um diálogo, contradizendo a regra número um dos manuais de roteiro - transformar as palavras em imagens.

— Insisto em contar em vez de mostrar — afirma. — Mas essas palavras devem pôr muita coisa em jogo. Nesse caso, o futuro de uma religião de 2 mil anos, o que traz um peso tão grande para essa conversa que espero que ela rivalize com uma cena de ação.

Inspiração para a pesquisa

O roteirista conta que a inspiração do filme surgiu quando ele assistia à missa inaugural de Francisco, em Roma, em 2013. Na ocasião, se perguntou qual fora a última vez em que um papa havia renunciado. A resposta do Google o surpreendeu: há mais de 700 anos.

A princípio, a ideia era criar uma peça sobre os eventos que levaram à abdicação de Bento XVI. Mas o texto do espetáculo - que estreou meses antes do filme, sob o título O Papa - chegou às mãos do diretor Fernando Meirelles, então à procura de um fio narrativo para o longa que desenvolvia sobre o papa Francisco.

Ambas as obras se baseiam na pesquisa histórica robusta agora apresentada no livro. Esta incluiu não só a leitura de biografias sobre Ratzinger, Bergoglio e o antecessor deles, João Paulo 2º, como de documentos eclesiásticos e notícias.

McCarten, que assinou outros três roteiros baseados em eventos reais nos últimos tempos -- A Teoria de TudoO Destino de uma Nação e Bohemian Rhapsody - diz que essa fidelidade com os fatos é imprescindível.

E se até agora ela não lhe rendeu um Oscar (ele foi indicado nas categorias de roteiro pela segunda vez por Dois Papas), ao menos tem garantido prêmios a seus protagonistas.

Eddie Redmayne venceu a láurea há seis anos por seu retrato do astrofísico Stephen Hawking em A Teoria de Tudo. Gary Oldman, por viver Winston Churchill em O Destino de uma Nação. Rami Malek, pelo Freddie Mercury de Bohemian Rhapsody. Neste ano, tanto Jonathan Pryce quanto Anthony Hopkins foram indicados por suas performances como Francisco e Bento, nesta ordem. 

— Levo muito a sério a noção de que esses filmes deveriam ser fidedignos. E é só depois de saber os fatos com muita propriedade que é possível tomar decisões criativas na narrativa, como combinar dois personagens num só, ou trocar uma data, sem prejudicar a verdade de uma cena — afirma McCarten.

— Mas Dois Papas é minha licença poética mais arriscada. Porque não temos registro dos debates e conversas entre esses dois homens.

Alguns especialistas no Vaticano criticam o filme justamente por isso. Para eles, o diálogo azeitado entre dois sacerdotes de personalidades e opiniões antagônicas seria impossível. 

— Alguns críticos gostariam de sugerir que há uma grande divisão entre eles. Mas minha pesquisa mostrou que eles mantêm um elo forte, o que é natural. A única pessoa que consegue entender o fardo daquela posição é outro papa — discorda.

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