Mostra recupera obras da única cineasta mulher da era de ouro de Hollywood

25.01.2020 | 12h15 - Atualizada em: 26.01.2020 | 15h35
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Por Folhapress
Dorothy Arzner

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Dorothy Arzner é homenageada em mostra no Rio de Janeiro

A maior contribuição de Dorothy Arzner (1897-1979) ao cinema não é visível, normalmente, nas telas: trata-se do chamado microfone boom, um longo braço ao fim do qual vai o objeto. Esse cabo permite ao técnico de som captar a voz do ator mesmo quando em movimento.

Isso era desconhecido quando Arzner fazia seu "Garotas na Farra", em 1929, e o cinema falado dava seus primeiros passos. Ou antes: naquele momento, os atores ficavam estáticos diante de microfones escondidos para terem a voz captada.

O problema de Arzner é que o forte de sua estrela, Clara Bow, era a mobilidade. Para permitir a ela se deslocar em cena e falar ao mesmo tempo, Arzner colocou o microfone na ponta de uma vara de pescar.

A gambiarra funcionou tão bem que outros a patentearam. Arzner não teve esse cuidado. Bastava-lhe, então, ser a única diretora de cinema mulher a trabalhar em Hollywood entre os anos 1920 a 1940.

Em outubro do ano passado, a unidade da Caixa Cultural no Rio de Janeiro cancelou o patrocínio a dois projetos que já tinham sido aprovados em edital. Um deles foi a mostra de Arzner, que discutiria temas feministas e homossexualidade.

Marcella Jacques, curadora do painel que celebra a diretora lésbica Dorothy Arzner, disse à época que o cancelamento da mostra se somou à campanha contra "temas que têm sido combatidos pelo governo atual".

Depois de várias cobranças, a Caixa respondeu aos organizadores do evento que "revê sua pauta cultural a todo momento" e que "a garantia da execução de um projeto só se estabelece a partir da assinatura do contrato entre a instituição e a proponente".

A mostra, enfim, está acontecendo desde o dia 14. 

A obra da cineasta, bem conhecida na época (quase todos os seus 15 filmes foram exibidos no Brasil, por exemplo), saiu de circuito até que o movimento feminista o trouxesse à luz novamente.

É graças a ele, pode-se dizer, que a Caixa Cultural do Rio de Janeiro promove o atual ciclo (que segue até 26 de janeiro) com 13 de seus 16 seus filmes (três estão perdidos). Ali se pode observar uma diretora que desenvolve um ponto de vista feminino em todo o seu trabalho. Os temas podem variar.

No único de seus filmes mudos que não foi perdido, "Segura o que É Teu" (1927), Clara Bow faz a garota que se apaixona por um rapaz comprometido (desde o nascimento, quase) com uma moça. Ocorre que o rapaz está apaixonado por Clara, enquanto sua noiva está apaixonada por outro homem.

Arranjar as coisas para todos, ferindo apenas os sentimentos patriarcais das famílias, é a habilidade que as jovens (Bow, sobretudo) desenvolvem ao longo do filme.

Mais difíceis são as coisas para Claudette Colbert em "Honra de Amantes". Ela é a superssecretária assediada em tempo integral pelo patrão (Fredric March), de quem precisa se esquivar em tempo integral, até porque está noiva de outro homem.

Eles se casam, ela deixa o emprego, o jovem marido sobe na vida até que seus negócios se complicam. É a partir daí que se revela um completo canalha. Pois, no olhar de Arzner, os homens são assediadores, infantis, não raro picaretas ou algo pior.

Pior é, por exemplo, o caso de Jim em "Sarah e seu Filho" (ou "A Volta do Deserdado", 1930). Casado com uma jovem imigrante (ucraniana, salvo erro), o forte dele é encher a cara enquanto Sarah dá duro. Para piorar as coisas, ele sequestra o filho de ambos e o vende a um ricaço. Sarah passará a vida a buscar o filho, sobretudo depois que se torna uma soprano famosa em todo mundo, o que acontece uns dez anos depois.

O registro de Arzner era variado, como se vê: podia variar da comédia ao melodrama, mas chegou até o musical. Quase toda a carreira de Arzner, diga-se, deu-se na Paramount, onde entrou em 1922, como montadora e roteirista. Em 1927, como a companhia lhe negasse o direito de dirigir, ameaçou topar um contrato com a Columbia. Só então recebeu sua chance.

Apesar de sua forte ligação com os irmãos DeMille (Cecil e William), desde 1932 dirige para várias outras companhias e continua a dirigir grandes atrizes, de Katharine Hepburn a Rosalind Russell.

Em 1940 demonstra suas virtudes em "A Vida É uma Dança", musical da RKO, com Maureen O'Hara e Lucille Ball nos principais papeis femininos (Louis Hayward e Ralph Bellamy são os homens do elenco). Aqui, o tema é a fraternidade feminina, suas cumplicidades e rivalidades, já que Maureen é a garota legal, que aspira se tornar bailarina clássica, enquanto Lucille é a espevitada Tiger Lily, nome com que se destaca da linha de coristas que compunha para se tornar estrela do burlesco (sem por isso perder a vulgaridade).

Uma cena de briga entre as duas é um momento forte do filme e demonstra que Arzner não via problemas só nas relações com os homens.

É um mistério a razão de essa obra ter ficado esquecida por tanto tempo. Talvez a riqueza e a variedade do cinema hollywoodiano no período a expliquem. Mas a presença desse olhar feminino forte numa atividade então exclusivamente masculina é mais do que suficiente para justificar a revisão de seus filmes.

Revisão que o Rio faz, que a Caixa de Belo Horizonte bloqueou depois que grupos de extrema direita protestaram (o que é ridículo, pois não conheciam os filmes, apenas sabiam que Arzner era gay; se fosse por isso, metade da produção de cinema não passaria em BH), e que não foi programada pela Caixa Cultural paulista, o que deixa qualquer interessado livre para trazê-lo para cá, diga-se.

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