Nuno Mindelis celebra a conexão entre o blues e a música africana em "Angola Blues"; e pretende deixar "um legado"

28.08.2020 | 12h36 - Atualizada em: 11.09.2020 | 18h32
Marina Martini Lopes
Por Marina Martini Lopes
Editora
Embora em "Angola Blues" Nuno se dedique, digamos assim, "de propósito" à música angolana, esse DNA musical se fez presente ao longo de toda a carreira do músico

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Confraria do vinho

Um dos mais respeitados nomes do blues no Brasil, é atração confirmada da edição do Confraria Itapema que ocorre na próxima quinta-feira, 17

Nuno Mindelis é um dos mais respeitados guitarristas de blues do Brasil e do mundo; e o seu mais recente trabalho é o Angola Blues, lançado em abril deste ano. O músico é atração confirmada da edição, em novo formato, do Confraria Itapema que acontece no dia 17 de setembro. Com o objetivo de criar novas experiências, o evento ganhou um toque de tecnologia, sem perder o charme e a seleção exclusiva de sons e aromas que conquistam os fãs da boa música e da boa gastronomia. A venda de ingressos para o Confraria Itapema encerram nesta sexta-feira, 11, no site confrariaitapema.com.br.

Em entrevista, o convidado especial da primeira edição do evento em 2020, fala sobre o seu mais novo trabalho. 

- Atualmente eu estou mais preocupado com meu legado. Deixando Angola Blues, eu acho que já deixei um documento. Claro, tem meus outros álbuns também, mas eu acho que Angola Blues é muito legítimo. Se daqui a 50 anos alguém achar que esse disco serviu de alguma coisa, eu estou feliz.

A legitimidade de que Nuno fala tem a ver com o fato de que o registro é totalmente voltado às origens do compositor e instrumentista: Nuno é de Angola; nasceu em Cabinda, passou a primeira infância em Huambo, e a adolescência em Luanda - de onde saiu aos 17 anos, fugindo da sangrenta guerra civil que estourou no país. O músico passou alguns anos no Canadá, mas depois decidiu se mudar definitivamente para o Brasil, onde seu pai estava: a família havia se separado ao escapar da guerra.

Nuno é de Angola; nasceu em Cabinda, passou a primeira infância em Huambo, e a adolescência em LuandaDivulgação

- Na época em que eu nasci, Angola era uma colônia de Portugal - explica Nuno. - Então eu nasci português, mas em território angolano. Eu tinha contato com a música de lá, mas gosto de fazer uma comparação assim: eu era como um jovem que, no Brasil, gosta de rock'n'roll, mas acaba ouvindo samba. Eu era muito ligado em rock, blues, jazz, mas claro que ouvia a música local. Esses eram os hits, era o que tocava no rádio. E foi essa música local que eu acabei fundindo ao meu DNA musical.

Embora em Angola Blues Nuno se dedique, digamos assim, "de propósito" à música angolana, esse DNA se fez presente ao longo de toda a carreira do músico:

- Eu acho que essas influências sempre ficam, mesmo que a gente não perceba - ele comenta. - É uma coisa que fica com você de forma subliminar. Eu faço meu blues, meu soul, meu rock, mas ele naturalmente não é igual ao feito pelos meus amigos norte-americanos. Por exemplo, agora eu gravei Palhaço, do Egberto Gismonti: não é blues, nem música africana, mas vai acabar ficando com a minha cara. Às vezes alguém me pergunta "eu quero fazer um blues em português, o que eu faço?", e eu digo "não pensa em blues, pensa em fazer uma música bonita. Se você for uma pessoa blues, a música vai ser blues." Cada artista imprime, sem perceber, sua assinatura nas coisas que faz.

- Às vezes, a formação musical dos guitarristas de blues norte-americanos, ou ingleses, é bastante embrutecida exclusivamente nesse gênero; não tem esse espectro mais ampliado de influências, de fusão com outros estilos - Nuno explica. - Eu sinto que isso acontece com quem é nativo dos Estados Unidos e também um pouco no Brasil, de modo geral. E isso não é uma crítica; eu acho que isso acontece por boas razões: o Brasil geralmente se ocupa mais em mostrar a própria música do que em absorver a música dos outros.

- Quando era adolescente lá em Angola, eu tinha muitos ídolos musicais brasileiros - ele exemplifica. - Mas, por outro lado, o blues chegou ao Brasil uns 30 anos depois de eu ter ouvido um blues pela primeira vez. Há países que tem o dom de exportar sua cultura, e são poucos; isso é muito precioso. Um jovem holandês, um jovem espanhol, um jovem português, ouvem o que os músicos do mundo todo fazem; porque esses países importam mais cultura do que exportam. O Brasil é um país com uma cultura única, fortíssima, riquíssima.

Além de faixas em português, Angola Blues também tem faixas cantadas em kimbundu, um dos muitos dialetos angolanos - e que aos poucos, infelizmente, está morrendo.

- Kimbundu é um dos quase 60 dialetos que existem por lá. Onde eu nasci, em Cabinda, tem dois dialetos diferentes. Kimbundu é de Luanda e região - esclarece Nuno. - São dezenas de dialetos, porque eram tribos separadas que acabaram transformadas em um único país por força da colonização. Quando Angola se tornou independente, a língua oficial adotada foi o português, exatamente para não escolher apenas um dos tantos dialetos como oficial; mas eu acho isso triste, porque os dialetos estão se perdendo. Só as pessoas mais velhas lá de Angola entendem plenamente as letras que eu estou cantando no álbum. Virou uma coisa meio nostálgica pra eles: "nossa, que lindo, minha avó falava esse dialeto."

Quem conhece um pouco da história do blues sabe que um disco voltado para a música africana não se afasta de modo algum do gênero oficialmente nascido no sul dos Estados Unidos - pelo contrário, se aproxima justamente do blues mais puro, das raízes do estilo.

- Hoje os historiadores são unânimes em dizer que o blues nasceu na África - conta Nuno. - E o jazz; porque o jazz é um blues almofadinha, assim, um blues com pós-graduação. (risos) Em New Orleans existe a Congo Square, onde ficavam os escravos vindos do Congo. Nessa praça, eles eram catequizados por padres brancos. E o blues tem a característica de canto-repetição, justamente pela influência dessas penitências coletivas. O padre gritava, digamos, "vocês são pecadores", e eles respondiam "somos, sim, senhor, e estamos arrependidos". Isso é uma característica básica do blues. Há lugares ermos na Louisiana, ainda hoje, onde há comunidades que fazem sons idênticos aos feitos no Congo, no Senegal, no Mali. Não há dúvida nenhuma de que o blues veio dali. Há uma relação umbilical entre a África e o blues e todos os seus derivados, o rock inclusive.

Angola Blues foi gravado no estúdio caseiro de Nuno, um estúdio "pequeno, mas funcional", segundo ele.

- A gente entrou em estúdio em abril ou maio de 2019 e "vomitou" aquilo tudo: gravamos tudo de uma vez, pra depois escolher os melhores takes - conta o artista, sobre o processo de gravação e produção do registro. - Eu fiquei trabalhando nisso até outubro de 2019. Depois, claro, você sempre aperfeiçoa: dá pra refazer uns vocais, melhorar aqui e ali. Basicamente a gente grava um rascunho e depois transforma esse rascunho em uma coisa mais lapidada. Eu nem costumo fazer isso; faço só o rascunho, porque o blues é isso mesmo, né? Mas nesse disco eu queria fazer um laboratório, uma coisa mais elaborada. Mas sempre mantendo a base ao vivo, claro.

No novo trabalho, Nuno está acompanhado dos músicos Dhieego Andrade (bateria), Marcos Klis (baixo), Alex Bessa (teclados), Ilker Ezaki (percussão) e Jessica Areias (voz); além das participações especiais de Airto Moreira e Flora Purim. Fazem parte do repertório músicas tradicionais angolanas, de autores desconhecidos, como Mudiakime, Muxima e Birim Birim; composições de Nuno, como Cabinda; e ainda canções como País Tropical, de Jorge Ben Jor.

Como todos os artistas que estavam em processo de finalização e lançamento de novos álbuns no começo de 2020, Nuno viu todo seu planejamento ser fortemente impactado pela pandemia de coronavírus.

- Quando Angola Blues entrou nas plataformas digitais, foi o primeiro dia de lockdown em São Paulo - ele diz. - Sério, no mesmo dia. (risos) Ele podia ser chamado de Lockdown Blues, em vez de Angola Blues. (risos) Como tive que cancelar todos os shows, a turnê, eu, instintivamente, entrei no estúdio, liguei o celular e falei "galera, eu vou lançar o Angola Blues numa live." Isso eu posso te dizer que fui um dos pioneiros; ainda não tinha esse monte de gente fazendo live. Eu nem estava pensando tanto na divulgação em si, foi uma coisa mais de necessidade, mesmo: músico tem essa necessidade de tocar com gente ouvindo. Então comecei a fazer lives duas vezes por semana; agora estou fazendo uma vez por semana. Se olhar meu Facebook já tem material pra fazer vários álbuns baseados em lives.

- Eu não consigo perceber ainda se o isolamento ajudou ou não o Angola Blues - ele reflete. - Por mais que eu tenha tido que cancelar os shows, fazendo minhas lives eu consegui fazer o disco chegar a outros países, a lugares onde eventualmente ele não teria chegado só com as apresentações ao vivo. Então eu não sei dizer.

Mas Nuno Mindelis não parece particularmente preocupado. Além de estar mais focado em deixar um legado musical, como contou no início do texto, o guitarrista também está mais interessado em simplesmente ter prazer com o que faz:

- Acho que, quando se é muito novo, a gente se preocupa demais com fama, com reconhecimento imediato - afirma. - Atualmente eu penso mais em fazer as coisas pela minha própria satisfação pessoal.

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