Obra de Carolina Maria de Jesus é quase toda inédita 60 anos depois de sua estreia

29.07.2020 | 17h10
Folhapress
Por Folhapress
Carolina Maria de Jesus

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Mundo Itapema

A autora se tornou conhecida com "Quarto de Despejo", de 1960

Carolina Maria de Jesus foi ao jornal Folha da Manhã, no dia 5 de fevereiro de 1941, em busca de alguém que dissesse o que era aquilo que ela escrevia. Quem a atendeu disse que ela era poetisa. Ela levou um susto. Ficou pensando que doença era aquela e se tinha cura. No bonde, perguntou a um senhor o que significava poetisa. "É mulher que tem pensamento poético", ouviu.

Mais calma, ainda achou melhor não contar aos vizinhos, com receio de que não acreditariam. Ela escrevia, então, para aliviar o cérebro e conseguir dormir. "Percebi que andando para cá e para lá, os pensamentos poéticos dissipam um pouco. Se eu ficar parada muito tempo, os versos começam a surgir." A história está num dos 37 diários dela guardados no Arquivo Público de sua cidade natal, a mineira Sacramento, com cerca de 26 mil habitantes, na divisa com São Paulo. É o principal acervo de originais da autora, que trabalhou como catadora e se tornou um dos maiores nomes da literatura brasileira no século 20.

Com romances, peças de teatro e diários, o material de Sacramento foi entregue à Companhia das Letras para um projeto que vai publicar a obra de Carolina, incluindo inéditos, a partir de cadernos originais espalhados em acervos pelo país. O projeto tem supervisão de quatro pesquisadoras da obra de Carolina, além da filha dela, Vera Eunice, e da escritora Conceição Evaristo. O primeiro lançamento, com base em parte desse material, será uma reedição ampliada do livro "Casa de Alvenaria", de 1961.

"A Carolina teve coragem de se posicionar num mundo branco, onde era considerada coitadinha. A escrita dela está para além da fome", diz a também mineira Conceição, que passou a ler a obra de Carolina nos anos 1960, ainda no movimento operário da Igreja Católica, em Belo Horizonte. Mesmo já escrevendo antes de conhecer a autora, Conceição, que nasceu e cresceu na favela, vê Carolina como referência e diz que ela inspirou sua mãe a escrever diários. "Quando eu lia Carolina, era como se a gente fosse personagem dela. As angústias, o desamparo, a fome, era o desamparo que a gente conhecia na prática."

Mas passadas seis décadas do livro de estreia, o clássico "Quarto de Despejo", de 1960, a maior parte da obra dela segue inédita. Um levantamento da pesquisadora Raffaella Fernandez, uma das envolvidas no projeto, reúne uma lista de sete romances, mais de cem poemas, 67 narrativas e cinco peças teatrais, todos inéditos. O livro que tornou Carolina conhecida e a levou a conhecer Clarice Lispector e o presidente João Goulart ainda é alvo de debate por mudanças feitas por editores e por tentar limitar a autora a um personagem que não poderia existir fora da favela como escritora.

Publicado em vários países, "Quarto" foi editado pelo jornalista Audálio Dantas, que conheceu Carolina ao fazer uma reportagem na favela do Canindé e a ouvir ameaçando os encrenqueiros do lugar de que seriam postos no livro. "Nos arquivos, a gente vê essa Carolina mais autêntica, percebe que ela não fala só de favela, de sofrimento, de tristeza. Mas os editores fizeram isso", diz Fernandez, que estuda a obra da escritora há 20 anos. Outro livro que Carolina viu publicado virou uma frustração. Além das alterações na obra, o nome foi trocado de "A Felizarda" para "Pedaços da Fome". Seus poemas, romances e o resto da obra ficcional nunca conseguiram espaço.

Os que conseguiram sempre sofreram com a mão pesada da edição, muitas vezes interferindo em rimas, quando ela saía de propósito da norma culta, segundo a pesquisadora Amanda Crispim. "O que a gente tem feito, como críticos, é mostrar o quanto Carolina Maria de Jesus coloca questões complexas, que só as grandes obras literárias colocam", afirma Fernanda Miranda, outra pesquisadora do projeto. Desde o centenário dela, há seis anos, Carolina ressurgiu em publicações e ganhou uma biografia escrita por Tom Farias. Agora, Vera Eunice de Jesus, a pessoa que melhor a conheceu, está construindo um livro sobre a história da mãe.

"Com 'Quarto de Despejo', houve uma grande mudança nas nossas vidas. Ela viu seus sonhos se realizando. Tinha o nome grafado como autora de um livro e conseguimos sair da favela", lembra a filha. Na anotação de um dos diários, porém, Carolina repudia o livro e escreve: "Passei mais fome como escritora do que como favelada. E sou mais revoltada do que quando era favelada".

O processo de reescrita constante da autora, o fato de nem todo o material ser datado e estar centralizado, fazem a navegação do acervo de Carolina mais difícil. Há trechos, por exemplo, que se repetem e apontam datas diferentes aos fatos que ela narra. Dos originais com paradeiro conhecido, há um caderno no Museu Afro Brasil, dois no Instituto Moreira Salles, o IMS, 14 na Biblioteca Nacional, além do acervo mineiro. Há ainda dois cadernos que pesquisadores indicavam estar na coleção do bibliófilo José Mindlin, mas que não estão no acervo doado à Universidade de São Paulo. Além de outros espalhados em arquivos pessoais.

No acervo de Sacramento, estão lembranças de viagens, edições de seus livros, fotos, recortes de jornais, anotações e cadernos de material inédito, como o romance "Dr. Sílvio". Esse material doado pela filha há 20 anos é guardado em caixas de papel e ocupa três prateleiras de um armário de compensado numa sala do prédio que já serviu de cadeia local - Carolina e a mãe passaram alguns dias detidas lá. Parte do material está deteriorada e não há climatização apropriada. Um relatório recomendando adequações, feito pelo IMS, apontou problemas como infestação de cupins, infiltração e goteiras. Pedia ainda um armário de aço, entre outras medidas.

Segundo o secretário municipal de Cultura, Carlos Alberto Cerchi, um admirador de Carolina, que reconhece as limitações, a ideia é que o acervo seja transferido para o Museu Histórico, onde ficará exposto ao público. A previsão é que isso ocorra em setembro. Vera, porém, quer que o material seja transferido a um endereço melhor, que garanta sua preservação pelas próximas décadas e o acesso do público. "Carolina é do povo, Carolina é do mundo", diz a filha da autora. "Carolina não pode ficar numa prateleira dentro da cadeia na qual esteve presa."

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