Porta dos Fundos, edital LGBT+, Bienal do Rio e mais: as produções culturais que foram alvo de ataques no Brasil

10.01.2020 | 17h15
Anna Rios
Por Anna Rios
Foto do dia 3 de setembro mostra painéis com desenhos de artistas escondidos atrás de uma parede na Câmara

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Mundo Itapema

Investidas contra exposições em museus e episódios de censura no teatro ganharam corpo desde 2017

A determinação da Justiça de remover da Netflix o especial de Natal do Porta dos Fundos, intitulado A Primeira Tentação de Cristo, é apenas um em uma série de episódios de censura ocorridos no Brasil nos últimos anos. 

A produção de 46 minutos tem sido alvo de protestos de grupos religiosos desde sua estreia, em dezembro, na tentativa de proibir a veiculação do programa. O extremo aconteceu na véspera de Natal, quando a sede da produtora, no Rio de Janeiro, foi alvo de artefatos explosivos.

Polêmicas envolvendo produções culturais ganharam corpo no Brasil desde 2017, quando diversos casos marcantes repercutiram no país, culminando na suspensão de exposições em museus, ataques a artistas e episódios de censura em produções de teatro, televisão e na literatura. Relembre os principais:

Porta dos Fundos

Jesus (Gregorio Duviviver) e Orlando (Fábio Porchat) no especial de Natal deste anoFoto: Divulgação

A versão natalina do Porta dos Fundos, em que Jesus (Gregorio Duvivier) leva para casa um suposto namorado (Fábio Porchat) após passar 40 dias no deserto, causou polêmica no Brasil e chegou a repercutir na mídia internacional. A sátira aborda o relacionamento entre os dois, além de mostrar que Jesus é adotado e que Maria fuma maconha. 

O enredo causou revolta de grupos religiosos, que abriram uma petição online pedindo a remoção do especial do catálogo da Netflix e entraram com diversas ações na Justiça. Nesta quarta-feira (8), o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro atendeu a pedido feito pela Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura e determinou que o Especial de Natal seja retirado do ar. A decisão é em caráter liminar.

Na véspera do último Natal, o prédio da produtora do canal Porta dos Fundos, no Rio de Janeiro, foi alvo de artefatos explosivos, que chegaram a provocar um princípio de incêndio. Um dos suspeitos de participar do crime fugiu para a Rússia e é procurado pela Interpol.

Enfim, Capivaras

A escritora gaúcha Luisa Geisler teve sua participação cancelada na Feira do Livro de Nova Hartz, no Vale do Sinos, em novembro de 2019, sob alegação de que seu novo livro Enfim, Capivaras, voltado ao público jovem, continha "linguagem inadequada". A existência de palavrões nas falas das personagens da narrativa chamou a atenção de professores e pais de alunos da rede pública de ensino. Com isso, iniciou-se uma pressão junto à prefeitura para retirar o acesso ao livro dos jovens entre 11 e 14 anos, que seria distribuído em três escolas municipais.

Bienal do Rio

HQ da Marvel mostra dois personagens masculinos se beijandoFoto: Divulgação

No início de setembro de 2019, em meio à Bienal do Livro Rio, o prefeito Marcelo Crivella (PRB) determinou que um romance gráfico (HQ) de Vingadores, da Marvel, fosse recolhido dos estandes do evento. A cena de dois personagens masculinos se beijando mostrada pela obra foi classificada pelo político como "conteúdo sexual para menores". Crivella disse, também, que "livros assim precisam estar em um plástico preto, lacrado, avisando o conteúdo".

A ação provocou protestos da classe artística e cultural, que se mobilizaram para impedir a retirada das obras da Bienal. A polêmica foi parar na Justiça e chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF). O presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, acatou com um pedido da Procuradoria-Geral da República e derrubou uma medida que autorizava a prefeitura carioca a censurar obras na Bienal do Livro do Rio. 

Exposição com críticas a Bolsonaro

Foto do dia 3 de setembro mostra painéis com desenhos de artistas escondidos atrás de uma parede na CâmaraFoto: Divulgação

O cancelamento de uma exposição sobre a Independência do Brasil, em setembro de 2019, provocou polêmica na Câmara Municipal de Porto Alegre. A existência de ilustrações críticas ao governo federal, com destaque para uma charge que mostra o presidente Jair Bolsonaro lambendo os sapatos do colega norte-americano Donald Trump enquanto entrega o Brasil em uma bandeja, motivou o cancelamento da mostra por parte da então presidente da Casa, Mônica Leal (PP). 

Artistas e vereadores de oposição se queixaram de censura. Nove dias depois, uma decisão liminar da Justiça determinou a reabertura da exposição na sede do Legislativo. 

Editais com filmes LGBT+

Cena do curta-metragem "Aqueles Dois", que serviu de base para o projeto da série "Transversais"Foto; Divulgação

A suspensão do edital de projetos sobre diversidade voltados às TVs públicas (que abarca produções com a temática LGBT+) foi anunciada no final de agosto de 2019 após o presidente Jair Bolsonaro criticar alguns projetos pré-selecionados durante uma transmissão ao vivo. No vídeo, o presidente disse que “garimpou” obras que buscavam autorização da Ancine para captar recursos por meio da Lei do Audiovisual e, entre elas, citou as do segmento LGBT+ – AfronteTransversais, Religare Queer e Sexo Reverso

Dias depois, a Justiça determinou a retomada do edital público, que englobava 80 projetos a serem contemplados com verbas do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Em 12 categorias, o tema da diversidade era proposto, como raça, religião e meio ambiente.  

Escultura retirada em Porto Alegre

Escultura removida da exposiçãoFoto: Divulgação

Uma escultura da exposição BIO-I,  do artista visual David Ceccon, foi removida no final de julho de 2019 da Pinacoteca Aldo Locatelli, localizada no Paço Municipal, sob a alegação de que seria inadequada ao espaço. Com uma forma que remete a um pênis e a uma vagina, a obra foi retirada da mostra antes da inauguração por orientação da Coordenação de Artes Visuais da Secretaria de Cultura do município. 

Inicialmente, quatro obras do artista David Ceccon seriam removidas, mas, após conversa entre artista e organização, apenas uma escultura foi retirada. 

No lugar onde estaria localizada a escultura, restou um prego na parede. Na inauguração, houve um momento em que um visitante colou na parede um pequeno papel com a palavra "censurado".

Obras de artistas indígenas destruídas

Cerca de 30 trabalhos de artistas indígenas foram danificados após uma invasão na Mostra M’Bai de Artes Plásticas, em Embu das Artes, na Grande São Paulo. O caso ocorreu no dia 16 de julho de 2019, e o ato foi considerado uma ação contra os povos da região. No mesmo mês, outras obras artísticas da cidade foram vandalizadas ou furtadas. Os artistas indígenas também foram convidados a expor os trabalhos — inclusive os danificados — em uma galeria no centro de São Paulo.

Cancelamento e proibição em Caxias do Sul

Exposição na Câmara de Vereadores de Caxias do SulFoto: Divulgação

Em novembro de 2018, a prefeitura de Caxias do Sul determinou a suspensão das visitações de escolas da rede municipal à Câmara de Vereadores da cidade por conta da exposição Santificados, que estava em cartaz no subsolo do prédio. 

A mesma exposição já havia sido cancelada meses antes no Centro de Cultura Ordovás, mantido pela prefeitura da cidade da Serra. A mostra do artista caxiense Rafael Dambros trazia 20 trabalhos que envolviam nudez na releitura da imagem de santos da Igreja Católica. 

A prefeitura alegou que as obras foram alvo de reclamações de pais de alunos devido à maneira como os personagens foram retratados pelo artista. O então prefeito de Caxias, Daniel Guerra, disse que o conteúdo era inadequado para crianças. Como nos outros casos, a suspensão da mostra levantou debates e discursos nas redes sociais. 

Ataques a artista morto

Na onda de críticas à arte, também em outubro de 2017, a mostra Faça Você Mesmo Sua Capela Sistina, aberta no Palácio das Ares, em Belo Horizonte, foi alvo de ataques de grupos católicos e evangélicos. Isso porque o caráter iconoclasta de obras de Pedro Moraleida destacavam a dualidade entre sexto e religião, além de abordar líderes políticos como Fidel Castro e Abraham Lincoln. O artista, que morreu em 1999, foi acusado de promover a pedofilia e a blasfêmia por manifestantes. 

Classificação etária no Masp

A polêmica envolvendo a performance do artista Wagner Schwartz no MAM levou o Museu de Arte de São Paulo (Masp) a restringir a classificação etária para maiores de 18 anos da exposição Histórias da Sexualidade, em outubro de 2017. Essa foi a primeira vez em 70 anos que o museu vetou a presença de menores.

Grupos de artistas chegaram a se reunir em frente ao Masp um dia antes da abertura da exposição em protesto contra a censura e em apoio à mostra. Um mês depois, o museu voltou atrás e voltou a permitir a entrada na mostra de menores de 18 anos acompanhados dos pais.

Queermuseu

Obras da "Queermuseu" no Santander CulturalFoto: Divulgação

A exposição mais comentada e menos vista de 2017 foi a Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, que chegou a ficar um mês aberta à visitação no Santander Cultural, em Porto Alegre. 

Porém, no dia 10 de setembro de 2017, o museu decidiu não abrir as portas e divulgou uma nota anunciando a suspensão após grupos ligados ao Movimento Brasil Livre (MBL) classificarem a mostra como ofensiva, alegando que os trabalhos expostos incentivavam a "blasfêmia" no uso de símbolos católicos e promoviam a difusão de "pedofilia" e "zoofilia".

O cancelamento da mostra em Porto Alegre gerou uma reação em cadeia de protestos em todo país, tanto de grupos favoráveis como contrários. Prevista para também ser exposta no Rio de Janeiro, a Queermuseu acabou sendo barrada do Museu de Arte do Rio (MAR) pelo prefeito Marcelo Crivella. Na cidade carioca, a exposição chegou a abrir na Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage e também causou reações.

Polêmica com artista nu

Dezoito dias depois do caso Queermuseu, a participação de uma criança em uma performance protagonizada por um homem nu deu início a nova polêmica sobre a liberdade artística. Fotos e vídeos registrados no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) durante o trabalho La Bête mostraram uma menina, que aparentava ter em torno de cinco anos, acompanhada da mãe, tocando os pés do coreógrafo Wagner Schwartz, que estava imóvel e deitado sobre o chão, sem roupas.

As imagens acabaram compartilhadas nas redes sociais junto com discursos de ódio. O artista e o museu foram acusados de pedofilia e o caso foi parar no Ministério Público de São Paulo, que decidiu arquivar o inquérito após um acordo junto ao MAM. A partir do fato, o museu se comprometeu a colocar em prática novas medidas de segurança para a apresentação de obras artísticas, entre elas a proibição do uso de celulares em locais que envolvam interação do público com artistas para proteger a imagem de crianças e adolescentes.

Travesti em papel de Jesus no Poa Em Cena

Atriz e ativista Renata Carvalho, protagonista da montagemFoto: Divulgação

Ainda em meio à polêmica da Queermuseu, uma peça teatral quase foi removida da programação do Porto Alegre em Cena de 2018. A montagem O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, foi estrelada pela atriz e ativista Renata Carvalho, travesti com mais de 20 anos de carreira no teatro que interpretou Jesus Cristo na peça.

Três dias antes da apresentação, a Justiça negou um pedido de um advogado, que havia solicitado a proibição do espetáculo teatral. A peça foi apresentada normalmente em duas sessões no Teatro Bruno Kiefer da Casa de Cultura Mario Quintana. 

*por GaúchaZH

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