Quadrinhos são coisa de mulher

23.10.2019 | 11h00 - Atualizada em: 23.10.2019 | 11h40
Por GaúchaZH null
Detalhe de "Juízo", de Amanda Miranda, uma das três obras que compõem "Tabu", lançamento da Mino

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"Tabu", trilogia escrita e desenhada por três jovens brasileiras, coroa um ano marcado pela quantidade e pela qualidade das obras com autoria feminina lançadas no país

Por GaúchaZH

Por onde quer que se olhe, 2019 está sendo, no Brasil, o ano dos quadrinhos produzidos por mulheres. Quantitativamente, já chegamos a pelo menos 30 títulos, entre livros e encadernados (sem considerar edições independentes). É um feito em um mercado tradicionalmente masculino, tanto na criação quanto na representatividade – vá até a banca de revista mais próxima e conte os gibis de herói estrelados por personagens femininas: as HQs protagonizadas por homens são o triplo.

- Não sei quanto o mercado está abrindo os olhos. Acredito mais é que nós estamos chutando a porta. Está cada vez mais difícil ignorar nosso trabalho - afirma Janaina de Luna, comandante da Mino, editora que está lançando uma trilogia produzida por três jovens quadrinistas brasileiras, Tabu.

"Minha Coisa Favorito É Monstro", da americana Emil Ferris, chegou ao Brasil após a consagração nos EUA e na EuropaFoto: Divulgação

Qualitativamente, 2019 trouxe ao país Minha Coisa Favorita É Monstro, obra da americana Emil Ferris que ganhou três prêmios Eisner e os festivais de Lucca, na Itália, e Angoulême, na França; foi o ano em que o principal troféu nacional, o HQMix, destacou Jéssica Groke (Me Leve Quando Sair) e Melissa Garabeli (Saudade) como novos talentos do roteiro e do desenho, além de laurear a antologia Gibi de Menininha – Historietas de Putaria e Terror como melhor publicação mix; também recebemos, recentemente, o delicado Aquele Verão, obra sobre uma garota no fim da infância que valeu às primas Jillian e Mariko Tamaki o Eisner de graphic novel inédita em 2015; e em novembro chegará Spinning, as memórias da adolescência de Tillie Walden, outra vencedora do Eisner (na categoria obra baseada na realidade, em 2018).

- Acho que 2019 tem sido uma grata surpresa, mas ao mesmo tempo vem aquele sentimento de "já estava na hora". Não é de hoje que mulheres produzem quadrinhos. Um dos nomes que podem provar isso é Trina Robbins (americana de 81 anos, pioneira das HQs feministas e a primeira desenhista da Mulher-Maravilha, em, pasme, 1986, quatro décadas após o surgimento da personagem) - comenta a historiadora Laluña Machado, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Sonia Luyten - Gibiteca de Santos (SP), membro do Observatório de Quadrinhos da ECA/USP e editora do site Minas Nerds. - Mas engana-se quem pensa que isso é o suficiente ou até se coloca em peso de igualdade com as produções que são distribuídas por homens. Existe a necessidade de mais evolução. Não só em relação a oportunidades para roteiristas, artistas ou editoras, mas também quanto à forma como a mulher é tratada dentro das histórias.

Laluña refere-se a um problema antigo, visto em especial nas HQs de ação (tanto faz se forem de super-heróis americanos ou europeias, brasileiras ou japonesas): o papel subalterno e, geralmente, sexualizado destinado às personagens femininas.

Em "Tina: Respeito", de Fefê Torquato, a coleção Graphic MSP abordou o assédio no ambiente de trabalhoFoto: Divulgação

- As grandes editoras ainda precisam aprender muitas coisas em relação a representatividade, ou pelo menos parar de reproduzir senso comum, como uma heroína poderosa ficar louca (Jean Grey, dos X-Men, é o maior exemplo), e sexualização desnecessária. Mas os passos estão sendo dados, devagar, mas estão - afirma Laluña. - A publicação de Tina: Respeito, com roteiro e arte de Fefê Torquato, nos faz entender que dá, sim, para contar uma boa história sem os elementos elencados anteriormente. E é bacana ver o maior estúdio da América Latina (o de Mauricio de Sousa) fazendo o grande público entender que o consumo de quadrinhos tem de ser educado também (leia uma pequena entrevista com Laluña ao final deste texto).

A HQ citada foi um dos fatos inéditos desta temporada. A coleção Graphic MSP, que apresenta a Turma da Mônica em um contexto mais maduro, promoveu a estreia da principal personagem jovem de Mauricio de Sousa. Em Respeito, Tina precisa lidar com o assédio no ambiente de trabalho. 

"Jane", de Aline Brosh McKenna, foi a primeira de quatro obras escritas por mulheres lançadas pela Pipoca & NanquimFoto: Divulgação

Até no território masculino dos super-heróis houve o que celebrar. Por exemplo, finalmente ganhou edição no Brasil a premiada Mulher-Maravilha: A Verdadeira Amazona (2016), escrita e pintada por Jill Thompson, e, na esteira do filme, a Capitã Marvel estrelou três encadernados, todos de autoria feminina. 

Teve mais: a editora Pipoca e Nanquim, uma das mais prestigiadas desde seu surgimento, em 2017, publicou, depois de 23 títulos, seu primeiro quadrinho com roteiro assinado por uma mulher, Jane, uma versão contemporânea de Aline Brosh McKenna (com desenhos de Ramon K. Perez) para o romance Jane Eyre, de Charlotte Brontë. E não parou nisso: logo vieram Luz que Fenece, da italiana Barbara Baldi, e O Último Voo das Borboletas, da japonesa Kan Takahama, e em novembro sai Sob o Solo, nova parceria do casal Bianca Pinheiro e Greg Stella. Isso foi coincidência ou a editora entende que há uma produção e um público consumidor que não vinham sendo representados?

- Foi apenas uma coincidência - responde Bruno Zago, um dos três sócios da Pipoca & Nanquim. - Nosso objetivo é publicar bons quadrinhos, de diversas localidades do mundo e que abordem os mais variados temas e estilos. Essas autoras entraram no catálogo por conta da qualidade indubitável de suas obras, e não para suprir uma suposta lacuna do mercado.

Com tradição em publicar autoras, a Nemo trouxe "Duplo Eu", das francesas Navie e Audrey Laine, sobre obesidade mórbidaFoto: Divulgação

As mulheres proporcionaram, de fato, uma volta ao mundo pelos quadrinhos - da chilena Catalina Bu, de Diário de um Só, à chinesa Zao Dao, da qual a editora gaúcha Figura lançará em breve A Balada de Sylvan - e ofertaram discussões sobre empatia, inclusão e empoderamento: a americana Cece Bell falou sobre os desafios de ser uma criança com problemas auditivos no autobiográfico A Surda Absurda, e a francesa Navie, em parceria com a artista Audrey Laine, retratou o drama da obesidade mórbida em Duplo Eu. Este último faz parte do catálogo da Nemo, editora com um olhar atento à produção feminina: em um cálculo não muito preciso, de 2015 para cá, um terço das obras foi escrito por mulheres.

- Não foi algo pensado para se tornar uma "bandeira", mas acabou se tornando um foco da editora de forma natural - comenta Carol Christo, editora assistente. - Quando cheguei na Nemo, em 2013, o catálogo continha Snoopy e clássicos europeus, em sua maioria. Mas eu percebia uma produção crescente por parte das mulheres, não só lá fora como aqui no Brasil, algo que também saltava aos olhos do diretor executivo do selo, Arnaud Vin, que havia selecionado grandes quadrinistas europeias, atuais, com uma pegada mais pop. E assim aconteceu. Resolvemos correr atrás de conhecer essas artistas e trouxemos nomes maravilhosos, como Margaux Motin, Una, Penélope Bagieu e Bianca Pinheiro. As mulheres são grandes produtoras e consumidoras de quadrinhos, acho que o mercado brasileiro apenas não se dava conta disso na época. 2019 está  sendo o ápice de uma espécie de "evolução". As mulheres vêm conquistando o seu espaço. É algo que está acontecendo em todas as áreas (ufa!). 

Temas "proibidos": os três volumes de "Tabu" vêm acondicionados em um saco plástico pretoFoto: Divulgação

Agora, a editora Mino publica uma obra que, desde o título, parece sintetizar e coroar o ano do quadrinho feminino no Brasil. Tabu reúne três volumes independentes, mas que não são vendidos separadamente (120 páginas no total, R$ 59,90). Foram escritos e desenhados por três autoras ainda novas na cena – Amanda Miranda, Jéssica Groke e Lalo –, com edição de Janaina de Luna (que responde a duas perguntas mais abaixo) e diagramação de Marina de Campos (o único homem envolvido foi o revisor Audaci Júnior).

Cada gibi da trilogia aborda um assunto tabu. Parte do encantamento de quem lê está em não saber muito sobre o que lhe aguarda, descobrir, aos poucos ou aos choques, os temas e as situações.

Página de "Cina", escrita e desenhada por LaloFoto: Divulgação

Mas pode-se dizer que Cina, da Lalo, traz reflexões existenciais capazes de mudar a perspectiva sobre uma solução desesperada. Que Piracema, da Jéssica Groke, traz ondas de nostalgia e de poesia silenciosa ao abordar uma lacuna na educação comportamental de crianças, sobretudo de meninas. E que Juízo, da Amanda Miranda, traz cenas que traduzem os segredos e as mentiras impostos pela sociedade a mulheres que ousam "contrariar a ordem natural das coisas", como muitos veem a questão.

Cada autora tem sua prosa e sua arte (sempre no preto e branco, que realça a carga dramática), ora concisas, ora elípticas, ora simbolistas, ora explícitas. As três nos obrigam a esquecer as narrativas diretas e coloridas com as quais estamos acostumados. É preciso ler nas entrelinhas, casar por conta própria desenho e palavra, adivinhar significados, sentir e absorver – ou então rejeitar, que seja: Lalo, Jéssica e Amanda não vieram para necessariamente agradar. Suas obras estão aí para provocar, tirar véus, nos sacudir da pasmaceira em que confortavelmente nos instalamos. Convidam para que a gente levante a mão se tiver uma pergunta, sugerem que pode ser a hora daquela conversa difícil, indicam o caminho do conhecimento, do diálogo, da compreensão. Para que haja menos sofrimento e menos abuso, certos assuntos precisam deixar de ser tabus.

Página de "Piracema", escrita e desenhada por Jéssica GrokeFoto: Divulgação

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