Selo que registrou começo da bossa nova e áudios de poetas restaura acervo

26.01.2020 | 12h35 - Atualizada em: 26.01.2020 | 12h32
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Carlos Drummond de Andrade

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"Festa" lançou dezenas de discos importantes para a cultura brasileira

Em 1955, o jornalista paulista Irineu Garcia começou a receber discos de pequenos selos da Europa. Entre eles, um do escritor André Gide, comentando uma aula de piano, e outro do poeta Paul Eluard, ambos franceses, declamando seu poema "Liberté". "Ele perguntou ao Drummond e ao Bandeira se eles topavam ser gravados declamando os próprios poemas", conta Gracita Garcia Bueno, sobrinha do jornalista.

Nasceu assim o primeiro LP do Festa, pequeno selo de que viria a lançar dezenas de discos importantes para a cultura brasileira, tanto de literatura quanto de música erudita e popular. Todo esse conteúdo, que inclui de Pablo Neruda declamando "Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada" a um dos primeiros LPs de bossa nova, o "Canção do Amor Demais", deve chegar ao YouTube e às plataformas de streaming ainda neste ano.

O projeto é fruto de uma parceria entre Gracita e Anete Rubin Mignone, filha do pianista e maestro Francisco Mignone, que figurou em vários lançamentos do Festa. "Nos encontramos porque ela precisava de coisas do pai e se interessou muito pelo selo", diz Gracita. "É preciso cuidado para lidar com esse material, por isso a convidei para ser herdeira do selo também."

As duas trabalham há três anos para reunir e preservar o catálogo. Atualmente, 80 dos 97 títulos estão disponíveis, entre fitas master, cópias digitais e vinis, guardados em um depósito no centro de São Paulo. Em paralelo, Anete cuida da masterização dos áudios e das autorizações dos artistas. É uma revitalização de um material importante. São registros que, no esquema convencional das gravadoras, dificilmente teriam sido feitos.

"A existência do Festa sinalizou a presença de um nicho fonográfico voltado para produções refinadas", afirma Ana Paula Orlandi, jornalista que estudou o selo em sua dissertação de mestrado. "A experiência em relação ao registro de literatura foi replicada em iniciativas do gênero dentro de grandes gravadoras."

Já existiam discos de literatura antes do Festa, mas não um nicho de mercado. A coleção "Poesias", inaugurada com Drummond e Bandeira, por exemplo, teve 13 discos, sempre com um poeta brasileiro em cada face do vinil. Isso só foi possível pela presença de Irineu Garcia, a partir dos anos 1940, entre os intelectuais e artistas que viviam nos bares de Copacabana. Lá, fez amigos e relações fundamentais para o selo.

"Tendo essa vida boêmia, noturna, ele conhecia muita gente", diz Gracita. "Foi o Vinicius de Moraes quem, por exemplo, sabia de um baianinho que tocava um violão diferente - e viria a ser João Gilberto." João é um dos músicos que toca em "Canção do Amor Demais", disco de 1958 com composições de Tom Jobim e Vinicius de Moraes e voz de Elizeth Cardoso, um dos marcos iniciais da bossa nova.

O Festa também abarcou o nacionalismo musical brasileiro, lançando principalmente Francisco Mignone e Heitor Villa-Lobos. Àquela altura, diz Orlandi, a indústria fonográfica estava mais voltada à música popular, e a gravação de eruditos era prática incomum. Nessa parte do catálogo, há ainda registros da música antiga brasileira, como a coletânea "Mestres do Barroco Mineiro (Séc. 18)", de 1958, que registra uma apresentação da Orquestra Sinfônica Brasileira no Theatro Municipal carioca.

O Festa durou até 1971, quando Irineu se exilou em Portugal. "Ele foi avisado pelos militares que tinha dois meses para sair do país", diz Gracita. O selo já não ia tão bem, e o catálogo acabou vendida para a Philips - depois PolyGram e Universal.

Gracita conseguiu recuperar os direitos do Festa após enviar várias cartas à gravadora, depois da morte do tio, em 1984. No começo dos anos 2000, chegou até a lançar títulos em CD. Em uma pasta, ela guarda recortes de jornal e cartas a Irineu. Entre elas, algumas de Tom Jobim e de Chico Buarque, além de várias de Pablo Neruda, que ficava hospedado na casa de Irineu no Rio.

"Faziam as coisas de graça. Não tem documento com autorização", ela diz. O próprio Irineu, muitas vezes, executava as operações do selo, que não tinha vendas expressivas - "Canção do Amor Demais" e "O Pequeno Príncipe" tiveram tiragem de 1.050 cópias, mas a média era de 250 a 500.

Anterior ao boom do disco, que aconteceu nos anos 1960 no Brasil, o Festa representa um dos últimos momentos de ingenuidade e idealismo no mercado fonográfico brasileiro. Quando Irineu o entregou a uma grande gravadora, a indústria havia ficado grande demais para ele. "De qualquer forma, era difícil ele continuar fazendo esse trabalho", diz Gracita. "Nosso objetivo é preservar essa memória cultural."

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